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18.11.10

Linguagem brasileira

(Que a Academia) viva e se transforme. Que admita nela as coisas desta terra informe, paradoxal, violenta, todas as forças ocultas de nosso caos. São elas que não permitem a língua estratificar-se e que nos afastam do falar português e dão à linguagem brasileira esse maravilhoso encanto da aluvião, do esplendor solar, que a tornam a única expressão verdadeiramente viva e feliz da nossa espiritualidade coletiva. Em vez de tendermos para a unidade literária com Portugal, alarguemos a nossa separação. Não é para perpetuar a vassalagem a Herculano, a Garret e a Camilo, como foi proclamado ao nascer da Academia, que nos reunimos. Não somos a câmara mortuária de Portugal! (José Pereira da Graça Aranha, imortal fundador e rebelde da Academia, 38ª cadeira)

11.11.10

Uso do artigo

Não satisfeito com a tendência ao lusitano de Napoleão, cacei mais perto de nossa alma brasileira o uso do artigo com possessivo. Mesmo O Manual de Redação e Estilo do Estado de São Paulo, napoleônico que é, pareceu-me inseguro na matéria ao dizer que “é facultativo o uso do artigo antes de possessivo que acompanha um substantivo... Para muitos autores, com a omissão do artigo a frase ganha em leveza. Assim, a forma Sua mãe, seu pai e seu irmão cantam bem tem mais ritmo que A sua mãe, o seu pai e o seu irmão cantam bem.” (1997, pág. 42).


Gostei mesmo foi do Manual de Redação e Estilo O Globo, de Luiz Garcia:

Artigos definidos e indefinidos usam-se com parcimônia de avarento e precisão de relojoeiro: se não têm o que fazer na frase, são entulho que prejudica a fluência e enfeia o estilo. Por outro lado, quando faltam o sentido pode ficar turvo e o estilo se tornará desagradavelmente telegráfico...
Em geral, dispensa-se a soma artigo definido + adjetivo ou pronome possessivo: “Ele ajudou nosso esforço” e não “ele ajudou o nosso esforço”. Ou: “Ele mexeu os pés” e não “ele mexeu os seus pés” (1994, págs. 103-104)
Depois de ler isso me lembrei daquele que mamou brasilina; ouçamos, pois, o mestre apaixonado pelo Brasil:


Se a transformação por que o Português está passando no Brasil importa uma decadência... ou se importa, como eu penso, uma elaboração para a sua florescência, questão é que o futuro decidirá... Sempre direi que seria uma aberração de todas as leis morais que a pujante civilização brasileira, com todos os elementos de força e grandeza, não aperfeiçoasse o instrumento das ideias, a língua.



José Martiniano de Alencar

Todos os povos de gênio musical possuem uma língua sonora e abundante. O Brasil está nestas condições; a influência nacional já se faz sentir na pronúncia muito mais suave do nosso dialeto.

...


Nesta [Iracema], como em todas as minhas obras recentes, se deve notar certa parcimônia no emprego do artigo definido, que eu só uso quando rigorosamente exigido pela clareza ou elegância do discurso. Isto que nada mais é do que uma reação contra o abuso dos escritores portugueses, que empregam aquela partícula sem tom nem som, me tem valido censuras de incorreto.

Há quem tache essa sobriedade no uso do artigo definido de galicismo, não se lembrando que o latim, donde provém nossa língua, não tinha aquela partícula, e, portanto, a omissão dela no estilo é antes um latinismo. Mas a mania do classismo, que outro nome não lhe cabe, repele a mínima afinidade entre duas línguas irmãs, saídas da mesma origem. Temos nós a culpa do ódio que semearam em Portugal os exércitos de Napoleão?

O mais interessante, porém, é a maneira de argumentar dos puristas. Às vezes, quando se trata de uma nova palavra ou locução, repelem-na pela razão peremptória de não se encontrar nos clássicos. Outras vezes, intrometem-se a criticar dos clássicos, determinando o que se deve imitar e o que evitar. Manifesta contradição: ou prevalece a respeito do estilo a razão de autoridade, e neste caso eles são os mestres, respeitai-os, ou prevalece a autoridade da razão, e nesse caso a questão é de opinião: à vossa contraponho a minha.

Os nossos melhores clássicos com muita elegância omitiram o artigo definido sempre que o pronome possessivo o tornava escusado; assim diziam eles meu filho, minha pátria, sua alma\ e não o meu filho, etc. Com que se hão de sair os puristas? Que o uso cheira afrancesismo e deve-se evitar.

O que se deve e com muito cuidado evitar é a incorreção gramatical, o pleonasmo contínuo que há no emprego do artigo, por uma espécie de abuso ou lapso de língua. Dá-se neste caso o mesmo que em grande número de verbos a que o vulgo juntou a letra a pela facilidade de sua pronúncia, como alevantar, amontoar, acostumar, etc. Da mesma forma escapa o artigo, que entretanto afeia e desalinha o discurso.

O uso do artigo, mesmo antes do pronome possessivo, pode tornar-se elegante e expressivo, servindo para indicar um objeto ao qual se faz uma alusão remota. Assim quando dizemos o nosso viajante, isto é, o viajante de quem falamos. Também em muitos casos a eufonia exige a interposição dessa partícula supérflua para suavizar um som áspero, ou desvanecer uma cacofonia. (José de Alencar - Iracema, Pós-Escrito II)