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9.1.11

O consenso da dessemelhança

Que o português falado e escrito no Brasil conserva distanciamentos naturais do português de Portugal e de outras partes do mundo, isso todos já sabem; mas quando o assunto é colocação de pronomes oblíquos átonos, aí a coisa esquenta. Temos nesse objeto uma das maiores, ou talvez a maior das evidências dessa disparidade.
Seja na escrita seja na língua falada, a preferência dos brasileiros é próclise, mesmo que ocorra em abertura de períodos. Sei que os trovões gritadores da dialética gramatical atroaram agora mesmo; por isso, me permitam dizer que há, obviamente, as ressalvas adequadas quando o caso é regulamento culto.
A linguística não nos seria bem útil neste mote? A próclise, justifica Sacconi, é favorita dos brasileiros por causa dos “padrões fonéticos por nós utilizados”, que são diferentes dos aplicados pelos lusitanos.
O Novo Manual da Redação da Folha de São Paulo é particularmente esclarecedor; ele explica:
Os pronomes oblíquos (me, te, se, lhe, o, a, nos, vos) são pronunciados de forma diferente em Portugal e no Brasil. Jamais ocorreria a um português, por menos instruído que fosse, dizer: Me parece que. O e do me praticamente não é pronunciado em Portugal e assim o me antes do parece formaria um encontro consonântico de difícil pronúncia: m'p'rece q. (p. 61, 1992)

Acresço, de forma parentética, ainda outro pensamento de Sacconi:
Não convém usar o hífen nos tempos compostos e nas locuções verbais, pois, na fala brasileira, o pronome oblíquo se liga foneticamente ao verbo principal, e não ao verbo auxiliar, justamente por essa razão é que se ouve e vê comumente:
Vamos nos unir! (Na pronúncia: Vamos nozunir!)
Íamos nos retratar. (Na pronúncia: Vamos nosretratar.)
Mesmo quando aparece um fator de próclise, nos tempos compostos e nas locuções verbais, a preferência, na fala brasileira, é pela colocação do pronome solto entre os verbos. Se não, vejamos:
Não vamos nos aliar a corruptos!
Já íamos nos separar!
Dificilmente entre nós encontramos a colocação típica de Portugal:
Não nos vamos aliar a corruptos!
Ou: Não vamos aliar-nos a corruptos!
nos íamos nos separar!
Ou: Já íamos separar-nos!
Nos tempos compostos, o pronome só não poderá aparecer após o particípio. Assim, temos estas colocações:
Eu me tenho deliciado com Machado de Assis.
Eu tenho me deliciado com Machado de Assis. (Preferida no Brasil)

Essa é uma “característica do português do Brasil que não é mais possível desprezar” (1997, Eduardo Martins, Manual de Redação e Estilo O Estado de São Paulo):
Ele estava se preparando para sair. / Falta d’água pode se agravar hoje. / Ele tinha se revoltado contra o pai. / Devia estar se aborrecendo com tudo aquilo. / Queria se livrar do amigo. / Vai se casar esta semana. / Esses homens podem nos ajudar. / Venho lhe trazer o meu apoio. / Tinha nos decepcionado (p. 70).

Fechados os parêntesis, parece que a dissonância linguística entre nós, irmãos de língua, se dá porque o que chamamos de pronomes oblíquos átonos já não assim tão átonos para os brasilianos:
No Brasil, os pronomes oblíquos têm uma pronúncia mais acentuada. Já deixaram de ser átonos e caminham em direção ao tonalismo; hoje são semitônicos. (O Novo Manual da Redação da Folha de São Paulo, p. 61)
Na pronúncia do Brasil, as formas pronominais oblíquas não são completamente átonas; são, antes, semitônicas. Assim se explica por que entre nós é predominante a tendência para a próclise: Ele terá de se calar. É o que eu queria lhe dizer. As pessoas foram se retirando. Me empreste o livro. (1984, Domingos Paschoal Cegalla, Novíssima Gramática da Língua Portuguesa, p. 444)

Observe atentamente no exemplo acima, onde se diz: “Me empreste o livro”, por Cegalla. Temos, portanto, ocorrências não somente quando o âmbito é a língua falada, pois foi sem reverenciar Napoleão Mendes e seu cabedal de ilustres nomes arrolados no Dicionário de Questões Vernáculas (1994, p. 445) que Érico Veríssimo, Rubem Braga e O Globo se juntaram a Cegalla para iniciar suas frases com próclise:
Me puxou para um lado e me contou que cancelou a viagem.” (Érico Veríssimo)
Me dê esse canivete, meu irmão.” (Rubem Braga)
Me deram até um contrato. Pensei: ‘Meu Deus, eu não entendo nada de televisão’.” (O Globo)
Não obstante, nos exames a que se precede no país há uma notória e nem sempre justificada preferência pela colocação pronominal de uso em Portugal, e não pela nossa topologia”. (Nossa Gramática Contemporânea, p. 360)

Por fim, algumas considerações a mais de um ou dois manuais de redação:
·         A situação dos pronomes pessoais oblíquos em relação aos verbos é diferente no Brasil e em Portugal: há diferença também entre a linguagem falada e a linguagem escrita.
·         O pronome oblíquo abre a frase na linguagem falada: “Me dê a faca.” No jornal, essa forma não é aceitável, a não ser em textos de cronistas.
·         É de uso mais comum no português do Brasil a ênclise (verbo antes do pronome): “Ela deve me ajudar” (em Portugal, “ela deve-me ajudar”).
·         Deve-se evitar a mesóclise (o pronome “dentro” do verbo: “fá-lo-ei”), que soa mal ao ouvido brasileiro. (O GLOBO, Manual de Redação e Estilo - São Paulo, 1994)
·         Trata-se de questão problemática. Há diferenças entre o padrão português e o brasileiro.
·         Com exceção de um ou outro caso, a tendência da Folha é adotar a colocação pronominal brasileira. (2010, Folha de São Paulo, Manual da Redação)

Termino, assim, em lugar nenhum e como comecei: no consenso da dessemelhança.
(Fidus)

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