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23.2.11

Into, Cantilena e a relação Tradutor X Revisor


Aconteceu quando eu fazia revisões de determinado tradutor recém-admitido à equipe, algoz dos polishes pós-tradução. Suas traduções eram uma estante de neologismos, mas o mais curioso era que ele traduzia a preposição inglesa into como “para o âmago de” praticamente 100% das vezes que a encontrava. Seus argumentos para o devaneio eram os mais variados: iam desde a vindicação do quê de autoria que brinda toda tradução (autoria que o revisor não respeitava), passavam pela potência que assumem preposições gregas tais como eis, e chegavam até à pusilanimidade do português e inabilidade do inglês em preservar aquela força da língua helênica na preposição em questão.
Frustrado por não lograr êxito em cunhar sua esdrúxula representação de into e sem encontrar nenhum dos seus “para o âmago de” nas publicações finais, impressas, o tradutor explodiu em zanga funesta contra o revisor: “QUOSQUE TANDEM CATILINA!!!”.
Quousque tandem abutere Catilina patientia nostra?” é a frase do famoso discurso de Cícero dirigida a Cantilena (Catilina), aplicada com precisão cirúrgica, admito, à conturbada relação Tradutor X Revisor.
Sem muita digladiação, para não acordar os trovões gritadores dessa dialética, tenho de sair em defesa do proofreader. Primeiro, de modo específico sobre a preposição into:
Sabemos das aplicações dessa preposição em inúmeros contextos, principalmente no sentido que indica direção e movimento a um ponto ou para dentro. Mas também pode ser a rota para um destino, colisão, mudança de condição, tempo decorrido, resultado, divisão, operação matemática. É usada para apontar envolvimento e objeto de interesse e até mesmo para indicar curiosidade (CIDE). Todavia, os principais textos reconhecidos pelos decanos da língua inglesa nunca usaram-na com a intenção proposta, substituindo pelo substantivo ‘âmago’. Há ocorrências de ‘âmago’ na tradução de kernel, o que nos leva a concluir que a desejando, o autor inglês poderia citá-la especificamente, ou outra.
‘Âmago’, por sua vez, muitas vezes se refere a um subconjunto de elementos de um sistema maior, como em ‘bojo’, ‘ventre’, ‘centro’, ‘cerne’, ‘interior’, ‘coração’, ‘eixo’, ‘substância’, ‘medula’, ‘essência’, ‘foco’, ‘fundamento’, ‘fundo’, ‘gema’, ‘imo’, ‘núcleo’, ‘íntimo’, ‘meio’, ‘miolo’, ‘quididade’, ‘seio’. Traduzir into the como para “o âmago de” alguma coisa, gera toda sorte de problemas. Muito além das questões de sintaxe que diferem uma preposição de um substantivo, nesse ponto a alegada elegância não justifica a incorreção crassa.
A segunda defesa, desta feita de modo mais geral e em amparo ao árduo e invisível ofício do revisor, é que não é desejo deles testar a paciência do tradutor, como Cantilena fez a Cícero, tentando usurpar ou solapar a posição ou o mérito deste; muito menos deseja o copyeditor defraudar o público alvo, o povo, figurado talvez nas virgens consagradas à Vesta dessa parábola. Neste mote, o revisor possivelmente entenda mais do que o tradutor as palavras do escritor Kurt Vonnegut: “Tenha pena dos leitores”. É, tradutor, tenha pena dos leitores. Não faça de idiotismos idiotice.
A arte de traduzir é, para o tradutor, como dar à luz um filho. Intromissões em seus textos são normalmente vistas como malignas, disso o advertido revisor entende bem. Ademais, e embora existam estudos contrários, do exímio copidesque se exige neutralidade, invisibilidade, nulidade de interpretação, omissão de intervenções tanto quanto possível e respeito à hierarquia estabelecida entre esses profissionais. Todavia, ainda que seja notório para os revisores (assim como para uma nata de leitores) o quê de autoria em toda tradução, "autoria" esta engatada pelos grandessíssimos esforços contrários do tradutor, o que é encarado com estranhamento naquele que traduz é o desejo deliberado de autoria – a esses se aplica a conhecida expressão italiana: traduttore traditore.

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